segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Servo de todos


Servo de todos (Amélia Rodrigues, in “Luz do Mundo” – cap. 18)
A imensa planície se desdobra entre os contrafortes dos outeiros.
Ao longe, o "primogênito dos montes" da Palestina — o Hermon — ostenta o cabeço aureolado de sol, e, a regular distância, o Tabor, parecendo uma sentinela natural, altaneira, defendendo a imensa planície, onde a balsamina medra em abundância e os tamarindeiros se arrebentam em flores...
Simultaneamente ali está a planície dos homens na qual se misturam as paixões e se decompõem as esperanças.
Planície da Terra e planície dos corações.
Naquela se misturam os cadáveres e as moscas entre córregos que cantam e flores que desatam aromas. Nesta as inquietações e desesperos, fecundando sorrisos e edificações.
Na terra os homens...
Nos homens o barro frágil da terra...
* * *
A planície dos espíritos se perde de vista. A multidão se agita e percorre os caminhos.
Longas são as estradas a vencer.
Dia de sol e céu transparente. A leve brisa murmura uma doce música no arvoredo, carreando ondas de suave perfume.
A Sua figura é um desafio — desafio de amor! Mais do que um estóico, porque faz do sofrimento um meio de atingir Deus e não o fim precípuo do Seu ministério, Ele parece penetrar no dédalo de todas as solicitudes humanas.
Pairando na face o tênue véu de singular melancolia, Seus olhos se transformam em duas estrelas reluzentes.
— Que vínheis discutindo pelos caminhos? — indagou. A voz pausada possuía um tom de reproche melancólico.
Vivia com aqueles companheiros, sentia suas aspirações, participava das suas dores, falava-lhes do Reino e das suas realizações e eles, no entanto, continuavam esvaziados de ideal. Fizera-se igual sem participar das suas querelas, testemunhando a nobreza da Sua compreensão permanente e ajudando-os, não obstante se demoravam trêfegos, levianos...
— Que vínheis discutindo pelo caminho? — A indagação os surpreendera, crianças espirituais, disputadores da ilusão...
* * *
Eles vinham joviais e alegres. Uma festa n’alma cantava júbilos inesperados. O dia de sol, a transparência do ar, o azul do céu, o frescor daquela hora matinal, as recordações dos acontecimentos últimos, no alto Tabor e em baixo, ao lado do epiléptico, as exaltações da massa já saciada nas primeiras tentativas, que não suportavam sopitar as inquirições que desde há algum tempo bailavam nas suas mentes.
— Quem dentre nós será o maior, no conceito do Rabi? Qual será o maior no Reino dos Céus?2
A pergunta espocou espontânea, natural, inocente...
Estugaram o passo e se entreolharam... Quem seria realmente o maior dentre todos? — pensaram. E como se o assunto não merecesse maiores considerações um silêncio incomodo se abateu sobre o grupo. No íntimo, porém, cada um se exalta e sorri emocionado, meneando a cabeça em assentimento, como se estivesse a ouvir o Mestre gentil destacar o mais amado, o mais relevante — é claro, que cada um a si se atribui o mérito da escolha.
As pedras do solo ao atrito com as alpercatas rolam, produzem característico ruído e a marcha prossegue.
— Eu, — referiu-se Judas — sem dúvida gozo da relevante confiança do Amigo. A mim me foi entregue a bolsa da Comunidade, num atestado inequívoco de consideração. Não receio, por isso, ser, senão o maior, um dos maiores...
Sorriu e cofiou a barba, fitando os companheiros extremunhados.
— Sou austero — apostrofou Tiago, Maior. — E o Mestre nunca deixou de me reservar Suas confidências, expressivas e nobres. Convida-me, não poucas vezes, a colóquios longos, narrando aos meus o que outros ouvidos não podem escutar...
Tomé, o Dídimo, verberando a prosápia dos companheiros, atroou:
— E Simão Pedro? Não tem sido Ele o distinguido com maior consideração? Não é a sua a casa elegida para as reuniões e os estudos dos planos futuros? Não esteve ele, também, no Tabor, como testemunha? Eu desconfio muito que não estaria mal situado na opinião do Senhor...
— João, todavia, repousa no seu peito — aventou Bartolomeu. — É o mais jovem de todos nós, carinhosamente tratado pela ternura do Embaixador Celeste. Talvez não tenha ainda toda a inteireza exigível para continuar a Obra ora encetada, não obstante...
— Mateus Levi, convém ressalvar, — afirmou Pedro, algo inquieto — é o mais erudito do grupo. Somos pescadores ignorantes, ele, todavia, lê e escreve, é hábil na arte das letras e da convivência com as leis. Embora o seu silêncio...
— Não concordo! — bradou Judas...
A discussão se fez acalorada e por pouco o pugilato infeliz não perturbou a união dos corações chamados ao amor, à concórdia, à paz...
— Que vínheis discutindo pelo caminho? — eis a indagação do Senhor.
"Queríeis saber quem dentre vós é o maior no Reino dos Céus. Eu vos digo: aquele que se fizer o menor.”
"O responsável do grupo é o servidor de todos. O comandante é o colaborador do grupo. O chefe é o subalterno das necessidades dos servidores.”
"Servo dos servos.”
"Não se pertence nem se permite repouso.”
"Renuncia ao nome e à paz, à alegria e à própria opinião.”
"Zeloso pelo bem-estar de todos é magoado por uns e outros, por todos incompreendido?”
"Quando ajuda sofre e sofre porque não pode ajudar — e todos o espezinham. Ferem-no e buscam--no, traem-no e sorriem para ele — servo de todos!”
"O maior se apaga servindo.”
"Apontado, ninguém crê nele, subestimam-no. Não merece consideração e assim paira naturalmente inatingido, sereno no dever íntimo, respeitado por si mesmo: o maior dentre todos!"
Os invigilantes recordam, então, o pedido de Salomé, a imprudente e a precipitada esposa de Zebedeu, que fora solicitar-Lhe colocar os dois filhos, um à direita outro à esquerda do Seu trono, quando fosse a hora do triunfo.
Não esqueceriam a resposta pausada e triste com que Ele elucidara a ambiciosa mãe:
— "É necessário saber se eles estarão dispostos a sorver a taça da amargura até a última gota —respondera. Quanto, porém, a colocá-los um à minha direita e outro à minha esquerda, isto não me compete..."
Houve um silêncio.
De cabelos encaracolados, passou gárrula criança de sorriso em flor.
O mestre, tomando-a, dela fez o seu modelo.
"Aquele que se fizer semelhante a um menino este penetrará no Reino de Deus." Os pequenos e claros olhos cheios de brilho do infante refletem pureza integral.
Ser adulto, com alma de criança, sem as mazelas da idade adulta.
Envelhecer e permanecer puro — sem malícia, sem impiedade, sem mágoa, jovial inocente como uma criança na quadra primaveril.
O maior de todos é o mais afável, o que mais se dedica e serve. Servo de todos e de todos amigo, não escolhendo misteres para ajudar.
Há os que são os maiores na ilusão e no engodo e sofrem a febre da ambição e da loucura.
Grandes, o mundo sempre os teve, com a alma enferma e mesquinha.
Pequenos nas grandes coisas e grandes nas tarefas insignificantes. Apequenar-se na grandeza para glorificar-se na pequenez.
— Que vínheis discutindo pelo caminho?
Seja, o que deseja o destaque, o servo de todos; faça-se o menor. Menor no orgulho. Maior na abnegação, na renúncia.
Maior — menor de todos, como Ele se revelara.


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